Nossa época

José Viegas Filho

Em primeiro lugar quero expressar a vocês o prazer com que aceitei este amável convite para fazer a abertura do Congresso do Instituto Brasil Europa. Com grande alegria reencontro meus amigos de Roma, de quem sinto permanentes saudades, e naturalmente vocês de Florianópolis, cidade que me encantou desde a primeira vez em que aqui estive. Retorno agora, à cidade e a esta vibrante Universidade, com afeto. Um dia ainda hei de morar aqui.

Saúdo o Congresso deste Instituto de Estudos que une o Brasil e a Europa. Desejo êxito em seus trabalhos, a que assistirei com curiosidade e interesse. Belos temas, como tecnologia e cultura, qualidade de vida, inclusão social e sustentabilidade, interdisciplinaridade na Universidade do futuro, cultura e imaginação, diversidade e multiculturalismo. Aguardo com expectativa os debates, pois estes são temas de grande alcance que podem ser tratados com criatividade e soltura, talvez sem excessivas preocupações técnicas, como eu fiz, ou quis fazer, em toda a minha vida. Parabéns aos organizadores pela escolha da agenda e obrigado por me fazerem estar aqui.

A Europa sempre esteve na nossa cabeça, ao menos desde que a Europa começou a existir para esta parte do mundo, faz pouco mais de quinhentos anos. A chegada foi retumbante e inesquecível. Os espanhois chegaram a cavalo e armados; os portugueses a pé. Nós, do lado luzitano, miscigenamo-nos desde o primeiro momento. Fundimos as nossas vidas. O índio existe dentro de nós, no nosso corpo; mas a Europa vive também na cabeça do índio, desde o índio puro até o que já não sabe que é índio.

Depois vieram os negros, que chegavam aqui semi-mortos, os que conseguiam superar um índice de mortalidade bem superior a cinquenta por cento no trajeto da captura inicial ao cativeiro definitivo. Os que sobreviveram juntaram-se a nós, novamente fundindo culturas. A velha história da antropofagia, de Oswald de Andrade, continua viva. Somos nós os antropófagos. Mas quem somos nós? Somos índios, somos negros e somos brancos ao mesmo tempo. Somos um festim antropofágico inter-étnico e transatlântico.

E aqui estamos, como sempre pensando na Europa. Depois da colonização, depois das loucuras do militarismo europeu na primeira metade do Século XX, nós, cidadãos livres extra-OTAN, nos acostumamos a olhar para a Europa em busca de lições de estabilidade, de justiça social, de harmonia internacional e de inspiração artística. E ficamos também à espera do equilíbrio europeu na busca de soluções para os nossos problemas; para os problemas do mundo.

Mas na nossa época isso ainda será possível? Há várias ordens de razão que apontam no sentido negativo. Os problemas são muitos e simultâneos e crescentes e a Europa não pode mostrar o caminho por que o caminho ainda não se mostrou.

A política parece ter perdido suas fontes de inspiração. Nós já não acreditamos nos partidos políticos, e este é um sentimento quase universal, mas continuamos achando que podemos confiar em um modelo de governança política, a democracia representativa, que só parece funcionar bem nos países nórdicos. Lá, mesmo quando a direita ganha, o padrão social-democrático permanece, porque funciona admiravelmente.

Mas no que diz respeito aos grandes problemas do mundo, ninguém acerta com o que fazer. Nem na Europa nem em lugar algum: mudança do clima; crise econômica; luta contra o terrorismo; confrontos religiosos e guerras civis; pobreza e miséria; a construção de um sistema internacional verdadeiramente democrático…

Quanto à mudança do clima, se as previsões se confirmarem, a humanidade terá que fazer um esforço gigantesco para remediar a tempo a situação. Não só o nível do mar vai subir: haverá intensos distúrbios climáticos nos mais diferentes lugares. Podem faltar alimentos. Nada do que aconteceu até agora nos autoriza a pensar que esse esforço seja realizável.

A crise econômica corroeu a fé na engenharia e na arquitetura da integração europeia e gerou uma recesão ou estagnação cruel, que causou um sofrimento imerecido ao povo italiano e sobretudo ao povo espanhol. Ela também afetou pesadamente a confiança no sistema de representação política. A esquerda não conseguiu fazer uma proposta sobre como sair da crise. A direita ficou cativa da política de austeridade, ultra-conservadora e desimaginosa. As eleições transformaram-se em um jogo de troca-troca: nos países onde a esquerda governava ganha a direita. Onde governava a direita a esquerda ganha, mas logo se aquieta. Ou então não ganha ninguém e fica-se um bom tempo sem governo sem que se note muito a diferença.

Na luta contra o terrorismo – embora aqui a Europa não tenha responsabilidade prática pelo que tem ocorrido – a coisa piorou. As guerras civis aumentaram. Os "terroristas" aperfeiçoaram sua organização celular e passaram a atuar junto aos rebeldes apoiados pelo Ocidente. O Ocidente responde usando drones, fazendo incursões-relâmpago em países estrangeiros, praticando assassinatos seletivos, detendo prolongadamente suspeitos sem julgamento e buscando terroristas nas ligações telefônicas da Presidenta do Brasil!

Conflitos religiosos e guerras civis, ao menos na África e no Oriente Médio, parecem não acabar e sim ir em aumento. O caos, a desordem, a pobreza e a guerra impedem que se alcancem as metas do milênio.

A pobreza e a miséria – graças a Deus não falo agora do Brasil ou da América do Sul – multiplica-se. O contraste entre esse fato e um processo vertiginoso de concentração de renda que tem o epicentro em Wall Street e que se espalha pelo mundo, é gritante. Nos EUA, o um por cento mais rico ficou com vinte por cento da renda de todo o país em 2012.

As lutas por um sistema internacional mais democrático e justo não prosperam e estão sempre sujeitas ao veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, todos potências nuclearmente armadas. A estrutura do sistema internacional continua a basear-se no poder, mais do que na justiça, Alguns podem tudo, outros não podem nada e o resto do mundo pode votar no que quiser, na Assembléia Geral das Nações Unidas, mas isso não produz nenhum efeito.

Saudades de Felipe González, de Willy Brandt, de Silvana Mangano, de Enrico Berlinguer, de Stéphane Audran, de François Mittérand, de Olof Palme, de Itzak Rabin, de Marcelo Mastroiani…

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Nossa época é aflitiva. Tudo o que acontece aumenta em volume, em intensidade e em velocidade. Todos nós nos envolvemos com múltiplas coisas ao mesmo tempo. Ninguém tem tempo para nada, já não se pode quase conversar, as respostas que recebemos, com notáveis exceções, são truncadas, ou não correspondem ao perguntado, por falta de tempo de reflexão na resposta. Esse acúmulo e essa velocidade estonteante são, sobretudo, um produto da tecnologia da informação – que, aliás, é a única coisa positiva que ocorreu neste nosso tempo assustador.

Assustador? Em primeiro lugar porque tudo o que irá acontecer será ainda maior. Para o bem ou para o mal. A lei de Moore parece tomar conta do mundo. A cada ano e meio teremos não só o dobro da capacidade computacional, mas também o dobro de problemas: Ou eles serão duas vezes maiores, ou duas vezes mais numerosos, ou duas vezes mais difíceis, como o trânsito em São Paulo. Em segundo lugar, porque, na verdade, não sabemos o que fazer.

No Brasil as pessoas se manifestam. Não se sabe bem o que querem. São de feição anarquista. Não têm lideranças ostensivas nem microfones. Estão insatisfeitos e inseguros. Por aí, pelo mundo inteiro isso está acontecendo. E ao mesmo tempo, na nossa poltrona, diante da tv, estamos sendo convidados a levar uma vida de alegrias sucessivas, diante de uma abundância de personagens histéricos e comerciais extravagantes: Muito ruído, muita cerveja e muita confusão. Muita voracidade. Até os desempregados estão obesos. Tudo se compra, tudo se come. E muito ruído.

É a época da globalização, que cria sentimentos internacionais. Como será, dentro de alguns anos? Haverá movimentos políticos internacionais? Conjuntos de pessoas que agem em anárquica sintonia em diversas partes do mundo ao mesmo tempo? Suportaremos esses sucessivos aumentos na velocidade das informações e das comunicações? Seremos despedidos de nossos empregos se não lograrmos estar permanentemente atualizados com os novos aplicativos? Época de grandes movimentos e pouca profundidade. Não nos surpreendamos com a quantidade de erros que se cometem na informação, na política, na macroeconomia. Ninguém pode dizer que controla o rumo do que vai acontecendo. Lembrem-se da queda do muro de Berlim. Um dos acontecimentos mais significativos do século não foi previsto por absolutamente ninguém e a todos pegou desprevenidos. O mundo já está assim, rápido e imprevisto, há algum tempo. Mas isso vai em aumento.

E esse estado de coisas vai provocando uma desorientação geral. As pessoas vão ficando cada vez mais indisponíveis e cada vez menos capazes de resolver os problemas, tanto os grandes, que ninguém resolve, quanto os pequenos.

Não devemos surpreender-nos, portanto, com a nossa própria perplexidade. Tampouco deveríamos surpreender-nos ao ver que, no mundo, o processo político de tomada de decisões está em crise e tem produzido resultados bem abaixo do desejável.

Isso se relaciona com a alta velocidade das transformações e acontece também em paralelo com o gigantesco processo de concentração de renda que já mencionamos acima. Posso dar mais alguns dados: Enquanto que, em um período de 26 anos que vai até meados da década passada, a classe média nos EUA aumentou sua renda real em 21% e o 1% mais rico aumentou-a em 480%. Nos anos recentes que sucederam o auge da crise, o 1% mais rico dos EUA ficou com 95% de todo o crescimento do PIB norte-americano. Em 2012, os dez por cento mais ricos ficaram com mais da metade da renda de todo o país; o 1% mais rico ficou com 95% de todo o crescimento do PIB norte-americano e com vinte por cento do total da renda do país e o um por cento desse por cento mais rico detém cinco por cento de tudo (quinhentas vezes mais do que a média da classe média). A concentração cresce em proporção geométrica.

No Brasil não estamos nem perto disso, graças a Deus. Ao contrário, somos um dos poucos países do mundo em que as classes populares cresceram acima da média nacional. Mas eu estou falando de uma tendência mundial e o Brasil não é uma ilha.

Qual a correlação entre esse processo voraz de concentração de renda e a pobreza das decisões tomadas recentemente a nível global? A concentração da renda corresponde à concentração do poder. O setor financeiro da economia global tomou o poder. Ele comanda a indústria, comanda a mídia e comanda amplas faixas da concertação política. Existe um apoio mútuo e global entre os vários segmentos da elite internacional. E, ainda por cima, os integrantes da elite financeira são os únicos que reúnem as condições técnicas para fazer o mundo funcionar. Tornaram-se insubstituíveis.

Todas essas tendências coincidem também com o processo de desregulação da economia. Dou exemplo: Até o terceiro quartel do Século XX, os bancos americanos não podiam atuar em âmbito nacional, mas no máximo no regional. Tampouco podiam ser ao mesmo tempo banco de varejo e banco de investimento. Essas regulações e inumeráveis outras que colocavam limites à liberdade de ação do capital foram erradicadas, não só nos EUA, mas por todo o mundo. Registre-se, contudo, que no Brasil várias dessas regulações persistem em vigor, o que nos ajudou muito a minimizar os piores efeitos da crise recente.

Os capitalistas ficaram livres para produzir bolhas financeiras e detêm tal soma de poderes que, quando a bolha estoura, o que fatalmente acontece, os governos – o dos EUA, principalmente, e governos da Europa também – contraem dívidas para dar dinheiro aos bancos que se veem em má situação. Trilhões de dólares que pertencem aos contribuintes que pagam seus impostos, são transferidos para os bancos, para remediar a “exuberância irracional” dos seus próprios dirigentes (nas palavras de Alan Greenspan, seu guru) e quem paga a conta é o povo – um processo conhecido como socialização dos prejuízos – que sofre todas as consequências da recessão, da queda qualitativa e quantitativa dos serviços públicos e das altas taxas de desemprego.

O que mais me choca é a quantidade de erros, precipitações e imprudências que essa elite cometeu e continua a cometer depois de conquistar a supremacia global e inconteste. O que mais me preocupa é a enorme dificuldade de desfazer todos esses impasses.

O que há em comum entre três processos – más decisões políticas, concentração de renda e poder e desregulação da economia?: O prevalecimento dos interesses particulares e específicos sobre o interesse público e o bem comum, a colocação do foco de atenção apenas no curto prazo, orientado para tirar o maior proveito possível no menor tempo possível do que quer que seja: um voto, uma compra, um fechar de olhos.

Ninguém que não faça parte do um por cento mais rico gosta disso que está acontecendo, mas eu creio que as pessoas em geral preferem não prestar muita atenção para não se angustiarem. Voltando à política: Nós, hoje, somos muito mais individualistas do que éramos uma geração atrás. Perdemos a fé nos partidos políticos e nos políticos em geral. Que significa isso? Será que realmente perdemos a fé no sistema de representação política da sociedade civil? Na democracia representativa? E sem ter nada de bom para pôr em seu lugar? É bom lembrar que ficamos, assim, muito mais vulneráveis a ações que divergem dos nossos interesses republicanos e fogem ao nosso controle. Mais uma crise sem resolução visível.

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Pode-se dizer que nesta nossa época a melhor coisa que nos aconteceu – se não a única positiva – são os progressos vertiginosos e cada vez mais intensos da tecnologia da informação. Pensar que cada um de nós tem hoje efetivamente ao seu alcance praticamente todo o conhecimento gerado pela humanidade é algo maravilhoso. Vivemos um momento de desenvolvimento espetacular, cujas projeções futuras são arrepiantes.

A Internet tornou-se indispensável a todos nós. Não podemos viver sem ela. Se uma ação coordenada de hackers puder um dia detonar a Internet globalmente e por um período longo, provavelmente mais de um bilhão de pessoas morreriam. A sua amplitude, sua agilidade, sua riqueza de informações constitui um patrimônio da humanidade, em um sentido bem literal. Ela é o cérebro da terra.

Pois a Internet vive uma discussão, uma luta pelo seu controle, que tem implicações concretas de vários tipos – filosóficos, políticos e econômicos. Não conheço os aspectos técnicos do assunto e não posso dar palpites, mas estou entre os que desejam que a Internet seja livre e gratuita para sempre. O Brasil, por decisão da nossa Presidenta, vai apresentar o tema às Nações Unidas em busca de um documento, um código, que defina como será o mecanismo de controle da Internet e imponha limites às maneiras como esse poder será exercido. Creio que essa é uma discussão fascinante e quem sabe o nosso congresso poderia refletir um pouco sobre ela.

Temos diante de nós enormes desafios e, talvez, a possibilidade de vencê-los. Não sei se os seres humanos teremos capacidade organizativa suficiente para vencê-los sem passarmos, nós também, por grandes transformações sociais e políticas.

O nosso planeta passa por um processo de transformação, produzido pelo homem, que tem natureza assintótica. Explico-me. Quando ocorreu o big bang, a temperatura inicial do universo era a máxima possível: 1032 graus. Imediatamente ela se precipitou, em uma queda inicialmente muito próxima à vertical, que pouco a pouco foi se estabilizando até chegar a níveis próximos ao mínimo possível: 273 graus abaixo de zero.

Por outro lado, o universo tinha, ao nascer, um tamanho virtualmente igual a zero e imediatamente se expandiu, em uma ascenção inicialmente próxima à vertical, talvez com tendência ao infinito.

Assíntóticas são, portanto, curvas que se aproximam ou do crescimento tendencialmente infinito, a assíntota vertical, ou da estabilidade a um nível baixo, a assíntota horizontal. Na verdade, qualquer progressão geométrica ilimitada, assim como qualquer processo acumulativo ilimitado, é de natureza assintótica.

Muitos desses processos acumulativos não são ilimitados. A lei de Moore, por exemplo, que tem uma razão de progressão extremamente rápida, tem o seu limite, que é a constituição física da matéria. Quando alcançarmos em nosso progresso tecnológico o nível mínimo determinado pelo tamanho das partículas elementares, não teremos mais como miniaturizar os circuitos e só poderemos desenvolver-nos aumentando o tamanho das máquinas e, consequentemente, o dispêndio de energia. Mas enquanto isso não acontecer, estaremos navegando em uma curva assintótica vertical.

Que acontecerá quando a nossa capacidade computacional for mil vezes maior do que é hoje (o que pode ocorrer em quinze anos)? Conseguiremos manter o passo e processar, em termos humanos, essa enorme quantidade de informação? Provavelmente teremos novas gerações de máquinas, que serão capazes de processar e organizar as informações para nós.

Hoje já somos dependentes dos computadores, que executam todos os nossos processos organizacionais. Mas a estrutura interna dos nossos computadores ainda não é inteligente e somos nós que temos a última palavra no desenvolvimento dos programas. Que acontecerá quando as máquinas puderem efetivamente pensar e criar e trabalhar associativamente? Se prosseguirmos na tendência assintótica, claramente seremos forçados a abdicar de fazer concorrência às máquinas e passar simplesmente a seguir as suas recomendações.

Isso me dá um frio na espinha. O tempo de associação lógica dessas super-máquinas será claramente inalcançável para os seres humanos. As ordens, instruções e tarefas que elas receberão e executarão serão cada vez mais geradas por elas próprias. E quando as máquinas deliberarem entre si, a velocidades para nós inalcançáveis, que papel teremos nós? Elas farão tudo por nós e para nós? Estaremos chegando ao paraíso? Ou viveremos todos, com as nossas emoções, os nossos anseios, os nossos valores românticos de justiça e liberdade, em um parque ecológico sobre o qual não teremos controle real?

Mas talvez não devamos assustar-nos. Em uma curva assintótica, todos os pontos que a constituem oferecem sempre a mesma perspectiva. Julgando apenas pela forma da curva, não podemos saber se estamos no início, no meio ou no fim da sua trajetória. Em uma curva assintótica vertical ascendente, como esta que mencionamos, qualquer que seja o ponto em que estejamos, sempre teremos a perspectiva de uma planície no passado e de uma escalada cada vez mais íngreme no futuro.

Além disso, já não temos tempo para elocubrações fantasiosas. Temos que cuidar de um presente cheio de dificuldades. Temos crises por resolver e não sabemos como. Já não podemos confiar nos políticos nem nos financistas e talvez nem mesmo nas máquinas. Tampouco queremos soluções produzidas por guerras, por ditaduras ou por assimetrias de poder. Em quem, então, podemos confiar? Nos professores, é claro.

Bom congresso para todos.

 

José Viegas Filho

9 de outubro de 2013