Doutor em Estudos Portugueses e Brasileiros, Roberto Vecchi participará do 2º Congresso Anual do IBE para abordar a exclusão e a inclusão no País

 

Marcado para os dias 6 a 8 de março em Belém, o 2º Congresso Anual do Instituto de Estudos Brasil Europa (IBE) vai reunir estudiosos renomados de instituições de ensino do Brasil e da Europa para discutir o tema “Como fazer avançar na inclusão em um mundo que cria excluídos?” (saiba mais aqui). Um dos convidados que confirmou presença é Roberto Vecchi, doutor em Estudos Portugueses e Brasileiros e professor de Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade de Bolonha (Itália) – uma das 28 instituições de ensino associadas ao IBE. Roberto Vecchi será responsável pelo painel Exclusão/Inclusão Social, previsto para o dia 8 de março.

Autor também do artigo “A exclusão não está longe daqui: a natureza como potencial operador biopolítico em algumas etapas de formação do Brasil”, assinado em parceria com Luis Fernando Beneduzi, Roberto Vecchi concedeu entrevista exclusiva ao site do IBE e explicou como a exclusão fez parte da formação do Brasil, relembrando o papel que natureza exerceu neste processo.

Na avaliação de Roberto Vecchi, o Brasil passa agora por um momento significativo de inclusão social, embora ainda não tenha resolvido a dívida de justiça social. “O problema talvez agora seja formular uma governância mais complexa sobre tais processos em andamento. A criação de uma consciência comum sobre a necessidade de eleger a justiça social como um dinamizador do crescimento decisivo (e não um obstáculo, como em certas vertentes liberistas se aventa). Embora exija tempo para se criar, é o pressuposto para a construção efetiva de um outro Brasil, um Brasil justo.”

Leia a entrevista abaixo, concedida por e-mail ao IBE.

Em seu artigo “A exclusão não está longe daqui: a natureza como potencial operador biopolítico em algumas etapas de formação do Brasil”, assinado em parceria com Luis Fernando Beneduzi, o senhor afirma que a exclusão faz parte do processo de formação do Brasil. Como se deu este processo?

A visão se apoia em uma imensa bibliografia crítica (dos “intérpretes do Brasil” e não só) e corresponde a uma fase de modernização radical do pensamento crítico sobre o conceito chave de “formação”. O que sustento é também algo de consagrado dentro da reflexão sobre o Brasil: a existência desde as “raízes” mais profundas, nos primórdios do processo colonial, de mecanismos disseminados e multíplices de exclusão que formaram a sociedade brasileira. O que acho interessante como crítico da cultura é que estes mecanismos desde os começos modernos do Brasil, ou seja, no arranque da colonização, apresentam não tanto um aspecto primário – como normalmente é conotado um colonialismo de um País europeu não hegemônico como Portugal – mas, pelo contrário, um certo grau de complexidade, sobretudo justapondo o plano histórico com o horizonte simbólico. Neste sentido, a colonização aproveitou um arsenal amplo de conciliações e mediações simbólicas que prescindiam da natureza histórica das relações sociais – no contexto escravocrata, por exemplo – e permeavam de modo idealístico a sociabilidade colonial dentro dos quadrantes ideológicos do tempo (penso sobretudo no forte eixo originário entre colonização material e ideológica, como no caso da conversão religiosa, que se percebe já com força nos primeiros textos portugueses sobre o Brasil, como por exemplo a formidável Carta do achamento, de Pêro Vaz de Caminha). É interessante notar que pelas condições de exceção em que ocorre a Independência do Brasil, indo além da colonização mas não da colonialidade – em termos históricos, políticos, mas diria sobretudo sociais – esta “tecnologia simbólica” que se moderniza também através de novos recursos de mediatização (culturais, literários, têcnicos, como por exemplo a difusão da imprensa) reproduz tais mecanismos tornando-os sempre mais sofisticados e profundamente inscritos na consciência das elites brasileiras. É por isso que proponho uma abordagem a este problema a partir de uma ferramenta teórica que diz respito à modernidade, como a biopolítica e o biopoder (em particular na vertente definida de Michel Foucault, sendo o campo rico de reflexões inclusive dialéticas) para repensar em processos que não são só próprios da modernidade mas que remontam genealogicamente a um problema de “inícios”.

O senhor diz que, no Brasil, a natureza funcionou como um meio que poderia ser definido como “biopolítico” na estruturação de dinâmicas de soberania e poder. Esse processo é uma peculiaridade do Brasil? O que favoreceu esta configuração?

Um aspecto surpreendente é que desde os inícios da colonização – que como se sabe foi tardia em relação por exemplo à criação do “império” na Índia porque Portugal não conseguia, por sua exiguidade, manter o duplo esforço de titular do Estado da Índia e de construtor da colônia no Brasil do marco zero – o uso da natureza nas representações institucionais (veja-se as Cartas dos Jesuítas ou as primeiras Crônicas) muda o estatuto justamente quando o projeto colonial se aprofunda. Se as primeiras imagens, os primeiros olhares, são marcados por uma tendência para a edenização, já a partir da imposição do primeiro nome, Terra da Vera Cruz, em seguida, com o começo do Brasil colônia, o estatuto representacional se altera: a natureza não é assim tão edênica como se pensava, o Eden se existe é pelo menos limítrofe do seu avesso, de um espaço infernal, não simbólico mas diabólico, marcado pelo pecado e pelo mal, onde sobretudo os índios deixam de ser adolescentes que brincam, num tempo paradisíaco de festa, mas passam a serem representados com imensuráveis defeitos: a violência, a luxuria e, sobretudo, o canibalismo (alimentar não ritual). Isto é patente, por exemplo, na primeira história oficial do Brasil, a História da Província de S. Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de Pero de Magalhães de Gândavo. O papel de idealização e desidealização operado pelo uso da natureza como elemento de inclusão e exclusão em nome de um poder soberano é relevante. Trata-se de um processo comum a vários contextos coloniais, não só naqueles promovidos por Portugal. No entanto, no Brasil, assume caraterísticas significativas, sobretudo cria um eixo inicial profundo e seminal para a formação da “cultura brasileira” entre fundação e formação (tal fundação de fato condicionará um determinado rumo do processo de formação).

A exclusão é uma forma de manter a dominação? Por que isto ocorre? É uma questão muito forte no Brasil?

Certamente a exclusão é, tecnicamente, uma afirmação do poder soberano, parte não exclusiva, neste sentido, de acordo com uma das teorias mais conhecidas sobre a soberania (Carl Schmitt) da decisão que o constitui, ou seja, da exceção. E serve para construir a dominação: de certo modo o poder que é sempre invisível em si se manifesta através de vários meios, como o espaço, os atores políticos ou econômicos etc. A exclusão como produto da ação do poder é um dos correlativos que expõem o funcionamento dos mecanismos da dominação. No Brasil, os eixos de que falamos – fundação/formação, colonialismo/colonialidade – tornaram a história do País – da colônia antes, do império e da nação depois – uma história de exclusões que conseguiram reproduzir verticalmente dispositivos de domínios. Pense-se, por exemplo, nos modos em que ocorre a abolição da escravatura e de como, de fato, a dinâmica configurada forma um excesso de oferta de mão de obra de custo zero para entender como retóricas progressivas foram, na verdade, frequentemente utilizadas para reproduzir formas convencionais de dominação.

Por que no Brasil o mito da democracia racial é tão forte? E quais indícios mostram que trata-se realmente de um mito?

O mito é tão forte porque se alimentou por uma presunção de realidade. Ou seja, entra também em um complexo regime de representação que oculta mais do que revela o “real”. Como se sabe, inclusive internacionalmente, a UNESCO, no quadro da Europa em escombros do pós Segunda Guerra Mundial, encomendou aos melhores sociólogos no Brasil um conjunto de estudos que explicasse como a presumida “democracia racial” se teria formado no País. A projeção portanto de uma autoimagem para o exterior foi também grande. Os estudos de sociólogos como Florestan Fernandes Thales de Azevedo, Oracy Nogueira etc. mostraram que, de fato, se tratava de uma autoimagem equivocada aquela da democracia racial e que na verdade havia uma organização social que ressentia ainda fortemente das diferenças raciais e um divisor biológico, ainda que ocultado ou denegado, funcionava na sociedade de classes. Inscrevia-se portanto naquele quadro que Roberto DaMatta chama de “estereótipos internos” a que se associa a imagem do Brasil. Internacionalmente recebeu força pelo luso-tropicalismo, a ideologia que Gilberto Freyre, a partir dos anos 50 começa a elaborar, que sobretudo funciona como alibi histórico para a permanência do colonialismo Salazarista na África. No entanto, ainda que como mito a suposta “democracia racial” tem desempenhado, na sua desmontagem crítica, uma função importante para mostrar também em termos históricos a conexão entre classe e raça no processo de formação e modernização do Brasil que, pelas razões que se diziam criou um objeto analítico complexo e de não imediata decifração.

Houve avanços nos últimos anos em relação ao tema da exclusão social? As pessoas têm se preocupado mais em não reproduzir a exclusão social?

Certamente o Brasil é um País que está realizando um significativo e vistoso processo de inclusão social. Ainda não resolveu a dívida de justiça social que desde os inícios se criou, mas tem uma tendência em curso que deixa esperar sobre a capacidade no futuro de ultrapassar o “apartheid social”, como o definiu Cristovam Buarque, que marcara a história do País. O problema talvez agora seja formular uma governância mais complexa sobre tais processos em andamento. Por exemplo, a aceleração de certo processo inclusivos pode paradoxalmente criar novas exclusões, mais difíceis por detetar e menos visíveis porque encobertas por outros processos inclusivos dominantes. Por isso, a criação de uma consciência comum sobre a necessidade de eleger a justiça social como um dinamizador do crescimento decisivo (e não um obstáculo, como em certas vertentes liberistas se aventa) embora exija tempo para se criar é o pressuposto para a construção efetiva de um outro Brasil, um Brasil justo.

A inclusão social tende a uniformizar as pessoas ou deve ser visto apenas como algo positivo? Que mudanças sociais a discussão sobre inclusão social pode trazer?

É importante distinguir entre justiça e uniformização. A justiça se realiza em pleno respeito das diferenças. Uma sociedade de pares, de iguais, não é uma sociedade uniformizada, pelo contrário é uma sociedade onde a diferença é exposta e valorizada a um nível máximo. Podemos até observar que sem diferença não tem igualdade. O problema é que em certos processos de inclusão, sobretudo em contextos desagregados em termos de necessidades primárias ainda não plenamente satisfeitas, a exigência de uma inclusão econômica, dentro de um espaço formal, parece apagar ou pelo menos reduzir a preocupação para uma inclusão com cidadania, que é a condição que incorpora também todas as diferenças (de gênero, classe, idade, credo, ideologia, raça, cultura etc)

O que significa a expressão “exclusão inclusiva”?

Trata-se de um conceito bastante consagrado com que o filósofo italiano Giorgio Agamben (em Homo Sacer) descreve o mecanismo da exceção com que é possível interpretar o funcionamento do poder soberano. Na exceção como exclusão inclusiva o soberano exerce o poder de incluir o que foi excluído. Por um lado, isto mostra como a norma, paradoxalmente, surge por fora, pela sua supensão, por outro lado confirma que a exclusão é parte, mas não única, da exceção e que ela se produz a partir da ação de um poder que decide, pela exeção, o que incluir. É pelo exercício de um poder que se delineia a relação estruturante entre o que está incluído e o que está excluído, como se a exclusão fosse fundamental, inclusive pelas providências imunitárias que supõe, para a constituição “comunitária” dos incluídos.

Na questão específica do índio o senhor afirma no artigo que o índio tem a missão de deixar de ser para poder ser. Por que a dinâmica colonial o obrigava a isso? Há paralelos com outros grupos sociais?

O índio sempre foi um significante vazio, se quisermos ficar dentro de uma metáfora linguística, sobre o qual diferentes colonialidades, do regime colonial, do império ou da nação, imprimiam o significado que pretendiam. O caso do “indianismo” romântico é uma amostra extrema deste processo de reificação a que o índio é submetido, transformado no fetiche de uma nacionalidade que de outro modo não se conseguiria autorepresentar. Nos povos-testemunha indígenas se acumula a dupla vertente, por um lado de destruição e, por outro, no vazio, de uma idealização póstuma – uma comemoração, em suma – dos índios exterminados. Por isso o “não ser” no caso de uma identidade postiça tão violentemente imposta é a condição para começar a ser “signo” pleno não só significante à mercê de significações alheias. Neste caso também, a do índio é uma batalha que ocorre sobretudo no plano dos discursos, na afirmação de uma contra-hegemonia em relação a modelos de dominação linguística, cultural etc (tanto que o extermínio indígena pode ser interpretado também como um efetivo epistemicídio)

Por que o senhor considera que o índio encontra-se ainda apartado do progresso da sociedade? Como seria possível inseri-lo no contexto social?

Os extremos da destruição ou idealização (na ausência) do índio criaram uma cultura impermeável à enorme contribuição que dentro de uma outra economia dos saberes os índios podem determinar. É claro que deve ser superado o conceito de “minoria” para acentuar mais aquele de diferença, como base de uma outra política, ativa, da cidadania. Dentro da cultura brasileira, que desde sempre reúne arquivos antagônicos de pensamentos hegemônicos mas também de resistências, estão se dando amplos passos para uma reformulação radical de pensamento que possa relocalizar o índio, sem precisar de destrui-lo ou idealizá-lo. Penso em projetos recentes como, por exemplo, os elaborados por Laymert Garcia dos Santos que promovem uma brusca inversão do pensamento indígena não associado ao passado mas ao futuro também tecnologicamente avançado da “pós-nação”.